Menino Miguel

Menino Miguel

Junho 22, 2020 Comentários fechados em Menino Miguel By Soweto*#%!

A morte de Miguel e a subjetividade do racismo estrutural brasileiro

“Se fosse eu, meu rosto estaria estampado, como já vi vários casos na televisão. Meu nome estaria estampado e meu rosto estaria em todas as mídias. Mas o dela não pode estar na mídia, não pode ser divulgado”, disse Mirtes Renata Souza à TV Globo.

Com este depoimento início esse breve texto para registrar solidariedade a Mirtes e Paulo, pais de Miguel, de cinco anos, morto no dia 05 de junho de 2020. Junto-me às pessoas que comungam do mesmo sentimento de revolta e indignação pelo ocorrido.

Concordo com o depoimento em forma de desabafo feito por Mirtes, sim o rosto preto da empregada doméstica estaria estampado nas primeiras páginas dos jornais e, mais do que isso, ela estaria presa, por que provavelmente não teria dinheiro para pagar fiança e passaria a ser vista e tratada como uma assassina.

Mirtes era funcionária do prefeito do município de Tamandaré (PE), Sérgio Hacker, e sua mulher, Sarí Mariana G. C. Real. A creche onde Miguel passava o dia estava fechada em função da pandemia, por este motivo a criança havia acompanhado a mãe ao trabalho. Miguel morreu durante o período em que estava sob a guarda momentânea de Sarí, enquanto sua mãe, Mirtes, passeava com a cachorra dos patrões.

Essa situação trágica expressa o racismo estrutural no qual o Brasil está alicerçado e que atinge todas as faixas etárias de negros e negras de tal forma que às crianças negras é negado o direito à infância. Retrata a discriminação social que atribui valores às vidas humanas de acordo com a posição na divisão social do trabalho que estas ocupam.  Miguel era uma criança negra e filho da empregada doméstica, dois atributos que estavam cravados naquele pequeno corpo negro, os quais retiraram dele o direito de ser criança e conferiu a Sarí a outorga para tratá-lo como adulto e com desleixo. Em função de seus atributos, Miguel foi conduzido à morte.

 “Era uma criança inocente. Não tinha noção de perigo, ele queria a mim, só queria a mãe dele. Ela não teve um pingo de paciência. […] Sari, eu amo teus filhos como se fossem meus. No único minuto que eu confiei meu filho a você, você deixou meu filho naquela situação”. 

Miguel era uma criança negra inocente que teve sua infância interrompida em função da ausência de paciência. Paciência que teve um limite, que se esgotou, afinal, Miguel era o filho da empregada. A ação da patroa ao abandonar a criança dentro do elevador, deixou bem claro que com filho de empregada paciência tem limite. O micro poder da patroa sob a criança poderia ter se materializado no cuidado e na atenção, mas, infelizmente, materializou-se no abandono, livrar-se daquele pequeno ser que insistia em ir ao encontro da mãe, foi o desejo da patroa que imperou naquele instante.

 Crianças negras são vítimas do racismo, são expostas a situações constrangedoras, humilhantes e vexatórias, muitas tentam o suicídio ou levam para o resto da vida traumas psicológicos. Estas situações são de extrema gravidade, devem ser denunciadas. É urgente a sociedade compreender a discriminação racial como forma de maus-tratos e a importância da existência do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA) no enfrentamento da discriminação racial, conforme Silva Jr. e Teixeira, 2016. 

Os nomes de Mirtes e de Marta, sua mãe e avó de Miguel, constavam na lista de servidores da prefeitura de Tamandaré, fato denunciado no dia da tragédia e desconhecido por ambas. Mirtes e sua mãe, na realidade trabalhavam como empregadas domésticas na casa de Sarí. Marta trabalhava desde 2014 e Mirtes há quatro anos. Duas gerações no emprego doméstico retratam uma realidade vivida por muitas famílias negras e demonstram o legado da escravidão. De acordo com Almeida (2019:33)

 A consequência de práticas de discriminação direta e indireta ao longo do tempo leva à estratificação social, um fenômeno intergeracional, em que o percurso de vida de todos os membros de um grupo social – o que inclui as chances de ascensão social – de reconhecimento e de sustento material – é afetado. (ALMEIDA, 2019).

Vale salientar que o emprego doméstico é uma categoria profissional historicamente formada por uma legião de mulheres negras. De acordo com o IBGE/2019, as mulheres pretas são as mais responsáveis pelos afazeres domésticos. A categoria somava 6,62 milhões no país, 93% mulheres, 66% negras. Atualmente muitas mulheres negras trabalham como empregadas domésticas sem carteira assinada, o que acarreta a desproteção pelas leis trabalhistas e compromete a possibilidade de se aposentarem e aproveitarem a fase da velhice com qualidade de vida. 

O período que estamos vivendo, de pandemia por conta do covid-19, está trazendo a luz o quanto as relações de trabalho doméstico são historicamente desumanas, violentas, discriminatórias. Mirtes e os patrões chegaram a pegar coronavírus, mesmo assim ela e sua mãe continuaram trabalhando. No dia 18 de março, no Esquerda Diário, foi publicada a seguinte matériaDoméstica morre com suspeita de coronavírus enquanto trabalhava para patrões em quarentena e a matéria segue:

Uma trabalhadora doméstica de 63 anos, morreu na tarde dessa terça-feira, dia 17 na cidade de Miguel Pereira, ao sul do Rio de Janeiro, com os sintomas do coronavírus.  Esta senhora era obrigada a seguir trabalhando na casa de sua patroa mesmo tendo testado positivo para o Covid-19.

A subjetividade escravagista, classista, elitista, conservadora, machista, enraizadas nas estruturas do Estado brasileiro foi traduzida na seguinte declaração do atual ministro da economia, Paulo Guedes犀利士 a-domestica-indo-pra-disneylandia-uma-festa-danada/”>dólar alto é bom para evitar que empregadas domésticas viagem ao exterior. A fala do ministro foi repudiada por diversos setores da sociedade. No Brasil, país da cidadania mutilada, como já dizia o professor Milton Santos, a empregada doméstica é considerada ainda por muitos/as empregadores/as como cidadãs de segunda categoria, as conquistas não são respeitadas e muitas trabalham na informalidade. 

Foi num passado recente, ano 2012, que foi promulgada a Emenda Constitucional 72, conhecida como PEC das Domésticas (PEC 66/2012). Essa conquista possibilitou a/aos trabalhadoras/es doméstica/os terem uma jornada de trabalho de 8h por dia e o direito à hora extra. Em 2015,

 a Lei Complementar 150 foi aprovada, concedendo ao trabalhador/a doméstico/a os mesmos direitos de um/a trabalhador/a celetista, ou seja, direito ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), direito ao seguro-desemprego, salário-família, adicional noturno, adicional de viagens, entre outros.

A rapper e historiadora Preta Rara (2019), ex-empregada doméstica, comenta: quantas de nós perdemos a vida dedicando a nossa existência em prol de pessoas que querem somente a nossa força de trabalho.

O racismo nos adoece, o racismo nos mata, o racismo cria fraturas em nossas vidas que deixam cicatrizes para sempre. 

Há décadas o Movimento Negro denuncia o racismo existente na sociedade brasileira e suas manifestações no genocídio da juventude negra, na violência policial e na desigualdade econômica que afeta diretamente a população negra. 

Miguel não sofreu um acidente. Miguel foi vítima do racismo, por ser uma criança negra, a ele foi negado o direito de ser simplesmente uma criança. Miguel foi vítima do racismo estrutural desse País. Desejo que a Justiça seja feita. Quanto ao Estado Brasileiro, está na hora de reconhecer seu passado escravocrata e a desigualdade racial provocada por séculos de exploração e expropriação de corpos negros. É urgente a criação de mecanismos para eliminar o racismo existente nas entranhas do pensamento social brasileiro. A Mirtes, meus pêsames. A sua dor, também e a minha dor. 

#JustiçaPorMiguel #VidasNegrasImportam

Bibliografia

ALMEIDA, Silva Luiz de.  Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen,2019.
RARA-PRETA.    Eu empregada doméstica   Ed. Letramento.   Belo Horizonte, 2019.
SILVA Jr e TEIXEIRA (org.). Discriminação racial é sinônimo de maus-tratos:   a importância do ECA para a proteção das crianças negras.      CEERT, São Paulo, 2016.

Suelma Ines de Deus Branco
Assistente Social, integrante da Soweto Organização Negra (www.soweto.org.br) e do Grupo de Estudo das Relações Etnicorraciais no Serviço Social (GERESS).

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