Mulheres negras e a invisibilidade na enfermagem Brasileira
Mulheres negras e a invisibilidade na enfermagem Brasileira
De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) de 2016, a população negra, somatória de pretos e pardos constitui 54,9% frente a 44,2% da população branca no país. No que se refere ao acesso à saúde há de se ressaltar, que apesar das dificuldades sabidamente enfrentadas, 67% da população negra é dependente, exclusivamente, do Sistema Único de Saúde (SUS). Atrelado a isso, a força de trabalho da equipe de enfermagem consisti no maior contingente de profissionais dentro do sistema de saúde, responsável por cerca de 60% das ações assistenciais desenvolvidas.
Em relação ao perfil dos Profissionais da Enfermagem, dados da pesquisa realizada pelo Conselho Federal de Enfermagem e divulgados em 2017, revelam o total de 1.804.535 profissionais pesquisados, assim distribuídos: 85,1% de Mulheres, 23% de Enfermeiros, 77% Técnicos e Auxiliares de Enfermagem, 53% Negras, 42% Brancas e 0,6% Indígenas. Quando confrontamos o quantitativo de profissionais pesquisados e sua distribuição por raça e escolaridade constata-se que 57,4% são trabalhadoras negras no nível médio, sob o comando de 57,9% de Enfermeiras Brancas (Brasil, 2017). Certamente esses resultados reproduzem a realidade dos serviços de saúde no país, por mais de um século.
Do ponto de vista histórico há reconhecimento que no Brasil colonial (1500-1822) coube às mulheres pretas e pardas as práticas de cuidados e curas. A ‘cultura dos cuidados’ revelou ter sido intensa a participação de mulheres negras como parteiras, amas de leite, negras domésticas, babás, mães pretas, isto é, mulheres que cuidavam de enfermos, velhos e crianças, mesmo que para o cuidado das crianças muitas devessem abandonar os seus próprios filhos. Contudo o processo de profissionalização iniciado por volta de 1860 lhes negou o espaço de atuação. O ingresso na Escola de Enfermeiras do Departamento Nacional de Saúde Pública em 1923, posteriormente batizada de Escola de Enfermeiras D. Anna Nery “passou a depender não só da posse do diploma do curso normal, como de um pré-requisito não formalizado: ser de ‘raça branca’. Tentou-se assim barrar o acesso à profissão não apenas as mulheres originárias das classes menos favorecidas, como aquelas oriundas do contingente populacional majoritário de negros e mestiços”. A enfermagem brasileira institucionalizada nasceu sob o escudo do ‘branqueamento’. A imagem da “enfermeira padrão” cristalizou a identidade profissional via elitização e branqueamento, sinônimo de respeito social. Nesse projeto, os conhecimentos específicos advindos das formações e capacitações passaram a ser valorizados em detrimentos dos conhecimentos das populações tradicionais.
Para a enfermagem institucionalizada e grande parte da produção científica da área prevalece a compreensãode que essa condição decorre da divisão social e técnica do trabalho na enfermagem, organização consolidada no parcelamento das ações assistenciais segundo a formação educacional e titulação dos profissionais, atribuindo-se o cuidado direto às profissionais de nível médio e o planejamento, gerenciamento, supervisão e ensino às universitárias. Essa divisão proposta por Florence Nightingale, fundadora da enfermagem moderna, serviu de modelo para a organização das práticas assistenciais, recrutamento e preparação das “nurses” e “lady nurses”: as primeiras, oriundas de classes menos favorecidas e financiadas pela Fundação eram direcionadas aos trabalhos práticos, enquanto as segundas eram pré-selecionadas, e preparadas para a supervisão e ensino, geralmente oriundas das classes média e alta. As publicações referidas às configurações das ocupações da enfermagem expressam uma compreensão consensuada, ou pelo menos não contestada de que “a divisão técnica interna do trabalho se hierarquizou a partir e sobre as relações sociais de gênero, raça e classe”.
A população negra permaneceu apartada da prestação de cuidados até meados de 1930, quando a expansão dos serviços de saúde pelo governo desenvolvimentista de Getúlio Vargas decidiu absorver contingentes de trabalhadores e possibilitou a ascensão de grupos sociais subalternizados. No Estado de São Paulo, à época da Revolução Constitucionalista de 1932, foi permitido a inclusão de negros no exército. Entre civis e militares anônimos destacam-se as “enfermeiras da Legião Negra”, mulheres negras, voluntárias, retratadas em cerimônias públicas como “enfermeiras”, usando símbolos universais do cuidado, dentre as quais se destaca Maria José Barroso, conhecida como “Maria Soldado”. Na Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo há registros da inclusão de duas estudantes negras a partir da segunda turma iniciada em 1943. O amplo processo de industrialização do país a partir das décadas 1960-1970 demandou maciços investimentos na criação dos cursos técnicos profissionalizantes, ‘voltados para as populações mais pobres que não tinham condições de acessar ao ensino superior’, consolidando em alguma medida, essa dinâmica de relações dentro da área profissional. Numa outra perspectiva de análise, as “desigualdades de oportunidades” reproduzidas nessa dinâmica, representam a dimensão fundante do feminismo protagonizado por mulheres negras, justamente por demarcar que apesar da homogeneidade representada no grupo de mulheres, há outro marcador social que dificulta, impede a mobilidade das mulheres negras. É suficientemente conhecida a distância que separa negros e brancos no que diz respeito à posição ocupacional nesse país. A “variável racial” produziu gêneros subalternizados. Ampliando-se essa perspectiva, ratifica-se a compreensão de que o racismo configura as relações sociais numa dada sociedade, de forma a “normalizar” o “modo de ação da vida cotidiana”. Na sua concepção estrutural, o fenômeno se estabelece a partir de uma ordem social que determina padrões e regras baseados em princípios discriminatórios que se reproduzem sistematicamente. Já a concepção institucional do racismo diz respeito aos modos de funcionamento das instituições, que naturalizam relações de poder, normas e privilégios de grupos sociais. É nosso entendimento de que o perfil dos profissionais da equipe de enfermagem descrito inicialmente se materializa no ‘racismo sistemático da sociedade brasileira’, apontado e combatido por pesquisadores e ativistas ao longo de décadas, seja no que se refere às barreiras que obstaculizam a mobilidade social, seja pela invisibilização dos sujeitos, das suas práticas e seus conhecimentos. A invisibilidade da população negra na história e na identidade da enfermagem brasileira constrói a falsa ideia de identidade social única e atemporal. Trata-se de uma falsa verdade, alicerçada pela supremacia de um grupo social e étnico em detrimento da ocultação de sujeitos, dos conhecimentos e práticas de outros, ao longo de períodos históricos, assim como na produção social e cultural da nossa sociedade.
Estamos em construção de projetos sociais que de fato reconheçam a contribuição dos grupos que compõe a sociedade e que respondam às necessidades dos sujeitos na sua condição de humanos. Assim, conclamamos as Entidades de Classe, as Universidades, os pesquisadores, as instâncias administrativas de recursos humanos dos mercados público e privado, a se posicionarem sobre os caminhos possíveis para atribuir à enfermagem brasileira o seu “real padrão”, tanto no aspecto imagético quanto no efetivo quadro de profissionais, contemplado, proporcionalmente, por todos os grupos étnicos que construíram a verdadeira história sanitária do país e que efetivamente suportam o sistema de saúde brasileiro. Essas decisões estarão em consonância com os temas da Década dos/as afrodescendentes, quais sejam: Reconhecimento, Justiça e Desenvolvimento, a vigir no período de 2015 a 2024, conforme compromisso da Assembleia Geral das Nações Unidas de promoção da igualdade racial em âmbito global, em acordo com a Declaração de Durban de 2001. E infelizmente temos que lembrar que no mesmo período que é atribuído ao Brasil a marca de ser o país com maior mortalidade de trabalhadoras e trabalhadores da saúde devido à pandemia no mundo, a OMS em conjunto com o Conselho Internacional de Enfermeiros (ICN) decreta 2020 como o ano da enfermeira e da parteira, a fim de destacar os impactos do trabalho, além das dificuldades enfrentadas pela categoria.
Diante desse quadro injusto, constrangedor e da negligencia do governo federal no gerenciamento da pandemia no nosso país, certamente é valido perguntar:
“Qual a parte que lhe cabe no enfrentamento dessa problemática”?
Alva Helena de Almeida – Enfermeira, Mestre em Saúde Pública, Doutora em Ciências. Mulher negra, ativista por um SUS público, de qualidade e SEM RACISMO. Integrante da Soweto Organização Negra.
Referências
Machado, Maria Helena (Coord.). Perfil da enfermagem no Brasil: relatório final: Brasil / coordenado por Maria Helena Machado. ― Rio de Janeiro : NERHUS – DAPS – ENSP/Fiocruz, 2017.
Lombardi MR. Campos VP. Revista da ABET, v.17, n.1 jan a jun, 2018.
Moreira MCN. A Fundação Rockefeller e a construção da identidade profissional de enfermagem no Brasil na Primeira República’. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, V(3): 621-45, nov. 1998-fev. 1999.
São Paulo. Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo (SP). Desenvolvimento da Educação em Enfermagem no Brasil (Século XIX). São Paulo: COREN-SP 2005. http://corensp.org.br/072005/.
Carneiro S. Mulheres em Movimento. Estudos Avançados, 17, n.49,2003.
Campos PFS. As enfermeiras da Legião Negra: representações da enfermagem na revolução constitucionalista de 1932 Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher no.33 Lisboa 2015.