30 anos do ECA e a efetivação do direito à leitura
30 anos do ECA e a efetivação
do direito à leitura
Washington Lopes Góes
A leitura favorece a remoção das barreiras educacionais de que tanto se fala, concedendo oportunidades mais justas de educação principalmente pela promoção do desenvolvimento da linguagem e do exercício intelectual. (CIRIACO, 2020)
Em 2020 o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), lei nº 8069/1990, completa seus 30 anos. Os direitos fundamentais inscritos no ECA são aqueles relacionados ao respeito à vida das crianças e dos adolescentes. Dentre estes direitos, os relacionados à educação e cultura têm uma questão peculiar: o direito à leitura. Este aspecto será abordado nesse artigo.
Fruto de uma intensa luta dos movimentos sociais o ECA é considerado por muitos uma lei avançada e moderna. Nele, se define o conceito de infância, assegura os direitos fundamentais da criança e do adolescente, cria o Conselho Tutelar que é responsável por zelar pelos direitos previstos nesta lei. [1]
Os direitos fundamentais inscritos no ECA são aqueles relacionados à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária (Artigo 4 do ECA). Dentre estes direitos, os relacionados à educação e cultura têm uma questão peculiar: o direito à leitura.
Assim, como é importante ter uma vida saudável, ter alimentação, estudar, entre outros, a leitura também é fundamental para o desenvolvimento do ser. De acordo com Fernandes (2007), o pleno exercício da cidadania requer a capacidade de leitura, uma vez que, ao desenvolver a competência de atribuir sentido ao texto, possibilita (ao indivíduo) a ampliação do seu posicionamento crítico do mundo.
Do mesmo modo, o ato de ler se constitui em ferramenta que contribui na formação humana e pode implicar na leitura crítica da sociedade, pois “O direito de ler significa igualmente o de desenvolver as potencialidades intelectuais e espirituais, de aprender e progredir. (CIRIACO, 2020). Ou seja, não se trata de mera atividade, mas sim de uma prática que influi diretamente no desenvolvimento humano.
Bajarde (2007), fala sobre a importância da aproximação de crianças e jovens aos livros. O contato é fundamental para a formação de leitores, pois além de ter proximidade com as histórias, as letras e ilustrações, o indivíduo atribui significado ao objeto.
Porém, as discussões relacionadas ao livro e leitura não estão apenas no campo do cognitivo, tem uma questão de apropriação e aproximação do objeto livro, ou seja, o acesso. A este respeito, vale citar que no escopo da política pública está o direito de acessar livros, o qual deveria ser assegurado por meio de bibliotecas públicas e outros meios.
Ir à biblioteca ou em qualquer espaço cultural deveria (também) ser uma escolha e, como tudo na vida, as escolhas são influenciadas pelo meio. Ou seja, dependem, também, dos contatos que a pessoa tem com os objetos da cultura que a humanidade produziu ao longo de sua existência. Em uma frase, para desenvolver a prática e o interesse por algo é necessário que as condições objetivas sejam asseguradas.
O artigo 58 do ECA[2] é categórico ao garantir o acesso às fontes de cultura. Podemos inferir que estas fontes são diversificadas e inúmeras, como museus, cidades históricas, o livro, entre outras. Então, pensar nos direitos fundamentais requer uma amplitude de possibilidades, sem as quais o indivíduo não será formado em sua plenitude humana.
Se, por um lado, podemos afirmar que desde 1990 o país assume um compromisso legal com esses direitos. Por outro, a história mostra que ao longo desses 30 anos, pouco tem se avançado na direção dessa humanização plena. Só em relação aos livros e à leitura é inegável que existe, ainda, uma lacuna imensa.
Os dados da pesquisa Retratos da Leitura do Instituto Pró-Livro[3] revelam que 44% da população não lê e 30% nunca comprou um livro. A média de obras lidas por pessoa ao ano é de 4.96. Desse total, 2.43 foram terminados e 2.53 lidos em partes. Como vimos, as pesquisas têm apontados o índice de livros lidos por ano, a quantidade de livros vendidos, o interesse pela leitura (o que muitos chamam de hábito).
Porém, muito pouco se discute sobre o acesso. As próprias escolas que passam a maior parte de seu tempo elaborando e aplicando métodos de ensino da leitura, pouco tem se preocupado com a garantia do acesso ao livro.
Segundo o Anuário Brasileiro da Educação Básica (2019)[4], apenas cerca de 45,7% das escolas públicas de ensino básico contam com bibliotecas ou salas de leituras. Destas, a pesquisa constatou: no Ensino Fundamental 48%; no Ensino Médio 85,7%; e nas escolas de Ensino Integral 53,1%. Sobre o Ensino e aprendizagem, os índices mostram que menos da metade dos alunos atingiram níveis de proficiência considerados adequados ao fim do 3º ano do Ensino Fundamental em Leitura e Matemática.
Segundo o IBGE, em 2019 mostra que o percentual de bibliotecas públicas nos municípios caiu de 97,1% em 2014 para 87,7% em 2018.[5]
Somam-se a estes, os índices de analfabetismo publicados pela PNAD (2019)[6]. Em pleno 2019 constatou-se que, a taxa de analfabetismo das pessoas de 15 anos ou mais no Brasil está em cerca de 6,6% (corresponde a 11 milhões de pessoas), sendo que 3,6% correspondem as pessoas de cor branca e 8,9% são as pessoas pretas. Esse estudo também demonstra que “[…] das 50 milhões de pessoas de 14 a 29 anos do país, 20,2% não completaram alguma das etapas da educação básica”, cerca de 10,1 milhões de jovens. Verifica-se aqui, além disso, que 51,2% (cerca de 69,5 milhões) dos adultos com mais de 25 anos não concluíram o Ensino Médio.
Estes dados, mostram a ineficiência da política pública brasileira em responder e assegurar o direito fundamental à educação, uma vez que cerca de 10 milhões de jovens não conseguem sequer completar o Ensino Básico.
Negligenciar este direito está diretamente ligado à ineficiência do Estado em não garantir políticas capazes de assegurar o direito de crianças e adolescentes terem acesso à leitura em espaços públicos de educação e cultura nos territórios em que estão inseridos.
Como se não bastasse o número alarmante de jovens e adultos que não tem seu direito de concluir os estudos básicos, o Estado mais uma vez aprofunda a violação de direitos quando não assegura a constituição de bibliotecas públicas, seja na escola ou em outro equipamento.
Para ilustrar o que foi dito, outra pesquisa do (IBGE)[7] mostra que o total de municípios brasileiros com bibliotecas públicas sofreu queda de quase 10% em quatro anos. O número caiu de 97,7%, em 2014 para 87,7%, em 2018[8]
Ao invés de caminhar para a consolidação de um direito fundamental, o país segue em sentido contrário. O fato é que, o acesso ao livro e à leitura, por mais avanços que tenham tido desde os anos de 1990, ainda é precarizado e, como vimos, não deu conta de uma geração.
Se, em 30 anos, a família, o Estado e a sociedade não foram capazes de assegurar com absoluta prioridade os direitos fundamentais de crianças e adolescentes, é notório que a lei não foi eficiente, ao menos no que tange às políticas públicas que deveriam garantir o que nela está assegurado. Mais especificamente no que diz respeito à leitura, por meio do direito à educação e à cultura, temos uma geração de adultos com problemas seríssimos em sua formação.
As organizações de bibliotecas comunitárias e espaços de leituras[9] nos territórios periféricos vem comprovando que quando a criança e o jovem têm acesso ao livro e, consequentemente, à práticas e atividades que promovem à leitura (saraus, slam, grupo de estudos, etc) sua relação com essa forma de acesso às fontes de cultura se concretiza e possibilita, muitas vezes, que essas crianças e jovens sejam agentes multiplicadores/as.
Do mesmo modo, esses espaços de promoção da leitura se constituem em órgãos que, além de promover o acesso à cultura, também denuncia as violações desses direitos por parte do Estado e da sociedade. Ou seja, reconhece que é importante pensar ações de humanização nos territórios periféricos, mas compreende que a tarefa é mais árdua porque quando se nota que após 30 anos não estamos nem perto de assegurar os direitos fundamentais inerentes à vida, há evidentemente uma política institucional de negligência e violações dos direitos.
Em suma, o direito à leitura é um daqueles que está no escopo do ECA em seu capítulo IV. Sendo assim, constitui-se em um direito fundamental inerente à formação humana. Porém, os dados demonstram que existe uma incapacidade do Estado em assegurar estes direitos, uma vez que, após 30 anos do ECA, a política pública de educação e cultura negligenciou o direito à escolarização e o acesso ao livro a uma parcela significativa da sociedade.
Apesar de importantes e significativas iniciativas populares, o país está muito longe de assegurar plenamente uma vida digna às crianças e aos adolescentes.
Diante dessas reflexões, o que fica é a importância de continuar a leitura do ECA como instrumento de questionamento do Estado. E o aprendizado de que, por mais que existam leis avançadas, a busca pela plena dignidade humana depende do avanço das lutas por outra sociabilidade.
Referências
BAJARD, Élie. Da escuta de textos à leitura. São Paulo: Cortez, 2007.
BRASIL. Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 16 jul. 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8069.htm#art266>. Acesso em: 16 dez. 2018.
CIRÍACO, Flávia Lima. A leitura e a escrita no professo de alfabetização. Educação Pública, v. 20, nº 4, 28 de janeiro de 2020. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/20/4/a-leitura-e-a-escrita-no-processo-de-alfabetizacao
FERNANDES, Célia Regina Delácio. Leitura, Literatura Infanto – Junvenil e Educação. Londrina: EDUEL, 2007.
___________________________________________________________
*Washington Lopes Góes é militante do
Coletivo de Esquerda Força Ativa. Mestre em Educação, Graduado em Letras pela
PUC-SP e pós-graduando em Cultura, educação e relações étnico-raciais (USP).
Trabalha como coordenador regional no Cenpec.
[1] O estatuto prevê as seguintes medidas: 1. Socioeducativas, que são aplicadas aos adolescentes que violarem seus direitos e, consequentemente, entrarem em situação de conflito com a lei; 2. De proteção à criança e ao adolescente, quando seus direitos estão ameaçados; 3. Pertinentes aos seus familiares, incluindo encaminhamento à tratamento toxicômano, entre outros.
[2] Art. 58. No processo educacional respeitar-se-ão os valores culturais, artísticos e históricos próprios do contexto social da criança e do adolescente, garantindo-se a estes a liberdade da criação e o acesso às fontes de cultura.
[3] http://prolivro2-org-br.umbler.net/pesquisas-retratos-da-leitura/sobre-a-pesquisa-2/
[4] https://www.todospelaeducacao.org.br/_uploads/_posts/302.pdf
[5] https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/28285-pnad-educacao-2019-mais-da-metade-das-pessoas-de-25-anos-ou-mais-nao-completaram-o-ensino-medio
[6] https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/28285-pnad-educacao-2019-mais-da-metade-das-pessoas-de-25-anos-ou-mais-nao-completaram-o-ensino-medio
[7] https://biblioo.cartacapital.com.br/brasil-nao-possui-bibliotecas-em-numero-suficiente-diz-manifesto-da-febab/
[8] https://biblioo.cartacapital.com.br/brasil-nao-possui-bibliotecas-em-numero-suficiente-diz-manifesto-da-febab/
[9] Conheça as ações da Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias e do LiteraSampa https://rnbc.org.br/redes/literasampa-sp/