EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: RECORDO AS LIÇÕES DE CASA E DA MINHA VIDA
RECORDO AS LIÇÕES DE CASA
E DA MINHA VIDA
GEVANILDA SANTOS[1]
Quero falar de um assunto tabu na sociedade brasileira, e, por isso silenciado: o enfrentamento ao racismo e ao machismo na educação, formal ou informal. Essa breve reflexão é um olhar pessoal na educação familiar e escolar entrelaçadas nas relações de gênero, raça e política. Tudo mediado por um documentário e a leitura do livro que retrata a trajetória de Michele Obama no mundo das celebridades internacionais.
Nós mulheres negras brasileiras parceiras da Soweto criamos uma forma de comunicação remota pra conversar sobre as percepções do filme / documentário “Minha História” que retrata a trajetória de Michele Obama. O grupo remoto denominado “Lições da minha história” teve um papel importante, sobretudo para nossa saúde mental. No momento da pandemia do corona vírus a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomendou o isolamento social e o bate papo virtual é uma forma saudável de dialogar. Foram encontros semanais e ao final de quase dois meses de bate papo virtual, combinamos, que cada participante faria um artigo com sua percepção, seu olhar e as lições apreendidas.
Inicialmente destaco dois pontos.
Á primeira vista sobressaiu o sucesso de Michele Obama no mundo das celebridades. Ela relata a peculiaridade do papel de “primeira dama” do império norte americano quando, em 2009, com a vitória eleitoral de Barack Obama a presidente dos EUA. Sem dúvida a história da Sra. Michele Obama é uma história de sucesso e brilhantismo que nos traz muitas lições. O aspecto mercadológico. A difusão e venda do livro ou documentário sobre a trajetória de uma mulher negra é um sucesso de venda mundial. Em sociedades racistas este aspecto é algo inusitado. Segundo, destaco impacto da experiencia positiva de Michele Obama para as mulheres negras em todo o mundo. E também para mulheres negras brasileiras.
Me recordo de uma viagem quando aguardava conexão em um aeroporto nacional e caminhava a observar bancas de revistas. Vi estampado na vitrine o livro da vida de Michele Obama. Entro e pergunto o preço do livro. Caríssimo! Sai sem comprar. Pensei no baixo poder de consumo da pretensa classe média negra brasileira. Ele ainda não é suficiente para adquirir produtos importados, muito embora o seu conteúdo fosse de grande interesse. Sou uma educadora e parte de um público interessado mais em leitura do que no consumismo de produtos “Black” atualmente, na moda. Por ironia do destino, como se costuma falar no Brasil, cheguei à história do livro por outra via, a comunicação remota durante o isolamento.
A partir da sugestão para assistir o documentário o meu interesse na comunicação remota do grupo de mulheres negras era saber como cada uma estava cuidando da saúde, da vida, dos sentimentos, dores e alegrias. Enquanto uma mulher negra e ativista da Soweto Organização Negra me despertou o interesse em aprofundar questões de gênero e raça. Aproveitar o tempo do bate papo para aprofundar nossa problemática social num momento em que era grande a apreensão com o agravamento da violência contra a mulher em decorrência da pandemia da corona vírus. Estávamos atentas e zelosas. Nos envolvemos na conversa e na participação qualificada afim de romper o silencio sobre as mazelas do cotidiano feminino e também falar das alegrias. Fomos vitoriosas. E cá estamos, compartilhando impressões a partir das lições apreendidas.
A primeira lição importante é a troca coletiva. As lições da vida de Michele Obama são inspiradoras. Eu destaco o aspecto identitário de gênero a partir do fato dela ser uma mulher negra como nós.
Somos mulheres negras contemporâneas com vivencia em países diferentes. Michele Obama vivenciou a realidade dos EUA e eu a realidade brasileira. Ela com uma vivencia num país que é o líder do capitalismo mundial ocidental. Eu com uma vivencia no Brasil, na América Latina, considerada quintal dos EUA, um país de capitalismo tardio dependente, subdesenvolvido com altíssimos índices de desigualdade social. Ambos os países desenvolveram o racismo estrutural e institucional.
O meu sentimento é que temos algo em comum. Rompemos as barreiras sociais e superamos o racismo através da educação. Fica uma pergunta no ar. Em que medida nossas trajetórias dialogam e se entrelaçam? Ser mulher negra num país desenvolvido ou subdesenvolvido é a mesma coisa? Qual é a diferença? E qual é a semelhança? O que nos une ou separa?
A segunda lição apreendida foi a importância de romper o silencio e trocar informação da educação formal ou informal. E deixar o registro histórico da vivencia antirracista.
Preencher a lacuna da subjetividade da educação antirracista antes era denominada atitude de “consciência negra”. Esta atitude se difundiu entre as/os ativistas do combate ao racismo brasileiro.
Há muitas definições do racismo no Brasil. Elas estão por aí nos livros e vídeos. São capazes de apontar características e dimensões estrutural ou institucional.
De um modo geral a sociedade brasileira está acostumada a tratar esta problemática histórica como um tabu. Não admite o racismo. E quando admite só reconhece o racismo nas práticas do outro.
O imaginário social brasileiro se acostumou a reconhecer o racismo mediado por um filme, uma música, um livro: o filme Macunaíma, a música Pedrada de Chico Cesar, o livro Capitães de Areia de Jorge Amado, o Livro de caráter sociológico “O significado protesto negro” de Florestan Fernandes, filmes norte-americanos de Spike Lee e aqueles protagonizados por atores e atrizes ganhadores do Óscar, dentre outros. É recente falar do racismo abertamente, em público, e na primeira pessoa.
A sociedade brasileira naturaliza a reclamação do racismo ao ponto de não considerar os seus efeitos ou impacto na população negra, especialmente na mulher negra. Há uma avaliação histórica desatualizada das mulheres negras como figuras “guerreiras, “fortes” e “resistente a pobreza e a dor”. É como se o racismo não impusesse nenhuma dificuldade a vida das mulheres. Aí naturaliza suas dores e seu sofrimento. Me parece que isso é um rastro de alheamento parecido com alienação que propicia o silencio da vítima e de toda sociedade. Aí está a importância de quebrar o silencio e falar em primeira pessoa das “dores e delicias de ser o que é”.
A sociedade brasileira também herdeira do patriarcalismo costuma responsabilizar a própria mulher pelo machismo sofrido, dizendo que fala demais e que é revoltada com seu insucesso. Assim a sociedade oculta a dimensão social do racismo e do machismo. O seu caráter coletivo e desumano que foi forjado pela sociedade. Como nos lembra a socióloga brasileira, Lélia Gonzalez homens e mulheres negros estão entrelaçados nessa problemática, na medida em que são cumplices da experiência histórica da escravidão na América. Denuncia a unilateralidade desta circunstancia alertando que todos os envolvidos contribuem com o machismo e o racismo. Nos alertou para a necessidade de uma perspectiva de gênero adequada as mulheres negras. E que não é legal nos aprisionar nas dores e delicias do patriarcalismo. Retomo aqui a importância dos grupos ou rodas de conversas entre mulheres. Nos círculos da nova cultura costuma-se quebrar o silencio , o que possibilita aflorar a consciência negra feminista e feminina, ingrediente básico da valorização da mulher negra. Embora Michele Obama não tenha dito nada sobre feminismo aprendemos muito com sua trajetória.
As relações sociais mais vigorosas e resistentes estão assentadas na identidade negra comum e na política. elas se constroem na interdependência, na referência, e no aprendizado coletivo. Concordo com a frase do educador Paulo Freire é caminhando que se conhece o caminho. O maior legado está guardado na frase “o caminho se aprende caminhando”. Acrescentaria a última frase da minha mãe em seu leito de morte…” coragem minhas filhas!”.
A esperança é que sejamos capazes de superar as dificuldades da vida para sermos felizes. De aprender com o/a outro/a as lições de vida. Assim recordo estas lições de casa e da minha vida.
Esse é o papel da educação. É o meu preferido. Por tudo isso o documentário de Michele Obama foi uma grata surpresa. Mesmo sabendo que nem tudo são flores. Uma referência pedagógica para a educação antirracista, não machista e contra todas as formas de misoginia e intolerância.
[1] Sou Gevanilda Santos. Nasci em Presidente Prudente nos anos 60 (SP), filha de migrantes negros nordestinos (Ba). Graduada em história e mestre em sociologia política pela PUC-SP, professora universitária aposentada, pesquisadora das relações socio-raciais. Coautora de livros dessa temática e atualmente compõe a diretora da Soweto Organização Negra.