Só quero botar o bloco antirracista na rua
SÓ QUERO BOTAR O BLOCO ANTIRRACISTA NA RUA [1]
Por Gevanilda Santos[2]
Qual será este ano o clima do 20 de novembro, já consagrado nacionalmente Dia da Consciência Negra? Hoje é possível encontrar quem vislumbre o arrefecimento da fase pandêmica da covid-19; outros, o recrudescimento de suas sequelas; e há ainda aqueles que interpretam a doença como algo corriqueiro. O pressuposto geral é que somos sobreviventes e estamos numa fase de renascimento. Mas, e o futuro, o que nos reserva? O que fazer? Este texto visa a contribuir para a reflexão das experiências mais duradouras de combate ao racismo, as mais significativas para o Movimento Negro contemporâneo e inspiradas nos direitos humanos de todos e todas.
Para quem encara o cenário nacional e seus problemas reais, resta enfrentar os novos desafios e encarar que nada será como antes. É a melhor saída. No epicentro desse cenário está o Brasil, e ele não mudou. O gigante adormecido, às vésperas de completar o bicentenário de sua independência, tem pouco a comemorar porque não é capaz de acolher igualmente todos os filhos da pátria, espalhados por sua grandeza territorial e sua diversidade regional.
Não é novidade que as desigualdades de raça, classe e gênero afligem e castigam as regiões brasileiras na proporcionalidade das vantagens da branquitude, da opulência de classe e das agruras do patriarcado. Mas nem todos padecem da mesma forma. A população negra e os povos indígenas estão em maior desalento por causa da pobreza acentuada, da destruição da natureza, da desvalorização cultural, do conservadorismo, do elitismo, do retrógrado machismo, da homofobia, da intolerância religiosa e da aberrante concentração de riqueza que engendra o racismo estrutural e sistêmico.
A esperança no fim da pandemia aumenta com o acesso às vacinas e ao cumprimento das regras sanitárias respeitadas mundialmente. Mas nem todos têm as mesmas oportunidades e acesso às políticas públicas e sociais. Há parcelas da população que padecem mais com o recrudescimento dos efeitos colaterais da pandemia – além da doença e do óbito, a fome, o trabalho precarizado, a violência policial e a doméstica, a desorganização familiar e o desequilíbrio da saúde mental, a exclusão digital; em suma, mazelas que já existiam mas foram agravadas sobretudo para a população nacional de pretos e pardos, aproximadamente 54% dos brasileiros, de acordo com o IBGE. Não há dúvida de que, por conta do racismo estrutural, essa é a parcela mais vulnerabilizada, e as estatísticas comprovam a realidade.
Não tenho palavras àqueles que encaram a covid-19 como algo corriqueiro. Aos demais, deixo uma indagação: no cenário deste 20 de novembro, como implementar as leis conquistadas no papel e alcançar a verdadeira equidade?
Brevemente, não se podem esgotar os fatores envolvidos no tema. Há muitas versões, ideias e caminhos. Apontamos algumas implicações importantes para reflexão que merecem aprofundamento:
• Nos últimos quarenta anos, o Movimento Negro Brasileiro se fortaleceu e pavimentou fortemente o caminho da resistência nas ruas.
• O ideal da consciência negra despertado no 20 de novembro de 1971 em Porto Alegre (RS), com o ativismo de Oliveira Silveira e outros, se espraiou por todo o território nacional.
• O protesto negro impera nos territórios simbólicos da luta do combate ao racismo, a exemplo do lançamento público do Movimento Negro Unificado (MNU) nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo (1978), e tem alcançado lugares distantes [3]
• O ativismo dos guerreiros de Zumbi e das guerreiras de Dandara, em seu modo tradicional ou contemporâneo e cibernético, segue denunciando o racismo antes mascarado, a exemplo dos ensinamentos de Abdias do Nascimento e Lélia Gonzalez. Hoje, intelectuais negros e negras com linguagem pop e moderna escancaram o caráter estrutural e sistêmico do preconceito racial.
• Após a fase da denúncia nas ruas do mito da democracia racial, floresceu a propositura de projetos variados que apontam caminhos como os da valorização da identidade negra, do acesso às políticas públicas, da confrontação da política institucional e do Estado Brasileiro. Há ainda propostas que saem dos becos, bocas e vielas e, lentamente, alcançam a comunidade, o território da cultura, a escola, a universidade, as redes de saúde, os movimentos sociais, fragmentos das classes sociais, as políticas públicas e até a Constituição Federal. E cada setor segue sua própria voz de comando e liderança. Mas não esqueçamos: a reação conservadora às lutas de combate ao racismo também se configura e reinventa.
• A unificação ou, se preferir, a unidade desafiadora tão almejada é constantemente rechaçada por interesses da luta de classe, raça e gênero, e timidamente acena com pequenas vantagens pessoais ou institucionais.
Há mais de quarenta anos fala-se da necessidade da formação de quadros na luta de combate ao racismo, principalmente de agregar os atuantes na perspectiva da mudança deste cenário. A juventude negra e as novas gerações de ativistas floresceram, apesar da campanha de extermínio必利勁 , do feminicídio e do aprisionamento em massa de negras e negros. A perspectiva de massificação foi atingida, porém chegou com uma certa miopia, ameaçando a unidade de ação para superar o racismo. Falam de vários movimentos negros, de negros e negras em movimento, da diversidade negra brasileira, dos que se perfilam à direita e à esquerda no espectro partidário brasileiro, do lugar de fala, da branquitude, do colorismo, do empoderamento e até do papel do antirracismo.
A via do antirracismo, na minha opinião, é uma versão semântica e acadêmica da integração dos não negros na luta de combate ao racismo. Nada contra. Vamos precisar de todos para acabar com o racismo. A superação do racismo, até atingirmos a equidade racial, não é tarefa apenas de negros e negras. É uma tarefa dos cidadãos e cidadãs brasileiros conscientes do racismo estrutural. É tarefa dos movimentos sociais e das instituições construtoras de uma sociedade democrática. Já dizia Hamilton Cardoso, jornalista e ativista paulista: “haverá de chegar o dia em que a consciência negra será nacional, pluriétnica e conduzida por negros e negras críticos ao capitalismo. O futuro já chegou? O que fazer?”
Já foi dito que não basta parecer antirracista. Os não negros – pêndulo favorável à implementação dos direitos das populações negra e indígena – devem se juntar à luta de combate ao racismo, porém não como âncora. O protagonismo é negro e indígena e mergulhado na ancestralidade guerreira. A participação de todos e todas é importante e democrática. Se o recado do protesto negro vem das ruas, no dia 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra, vamos botar o bloco antirracista nas ruas.
[1] Este texto foi originalmente publicado na página das Edições Sesc São Paulo. (Confira matéria original)
[2] A autora é graduada em história e mestre em sociologia política pela PUC-SP, professora universitária aposentada, pesquisadora das relações sociorraciais e ativista da Soweto Organização Negra.
[3] Ver Movimento Negro Unificado: a resistência nas ruas, organizado por mim em parceria com Ennio Brauns e José Adão de Oliveira (São Paulo:. Fundação Perseu Abramo/Edições Sesc, 2020.