MAIO DE 2022: conquista da dignidade salarial e enfrentamento ao Racismo na Enfermagem

MAIO DE 2022: conquista da dignidade salarial e enfrentamento ao Racismo na Enfermagem

Maio 31, 2022 Comentários fechados em MAIO DE 2022: conquista da dignidade salarial e enfrentamento ao Racismo na Enfermagem By Soweto*#%!

Alva Helena de Almeida*

O dia 04 de maio de 2022 marcou a historiografia da EnfermagemI brasileira depois da definição do Piso Salarial e da Jornada de trabalho de 30 horas semanais, mediante conquista arrasadora na Câmara Federal.  Essa vitória representou aos profissionais, maioria de mulheres negras, a real possibilidade de usufruir de um salário mais justo, respeito e dignidade na prática profissional. Aguardamos em mobilização, o deferimento do presidente da República.

Paralelamente a esse fato notável, a Articulação Nacional de Enfermagem Negra (ANEN) tornou público os dados da Sondagem sobre Racismo e Discriminação realizada em novembro de 2021, em parceria com o Conselho Regional de Enfermagem do Estado de São Paulo (CORENSP). Nosso objetivo foi produzir dados mensuráveis que expressassem as desigualdades no mercado de trabalho, além de identificar práticas racistas que impeçam o acesso e a mobilidade social e institucional de profissionais negras e negros. Os profissionais foram convidados a participar da sondagem através de formulário eletrônico, após manifestar o aceite do Termo de Consentimento Livre Esclarecido.

Os dados reafirmaram o perfil feminino da profissão com 85,6% de mulheres, maioria cisgêneros, heterossexuais e uma pequena parcela se identificou como transgêneros, homo e bissexuais. O conjunto se caracterizou por maioria de adultos jovens, 40,5% entre 34 e 43 anos, e somente 13,6% com mais de 53 anos. Contudo, o mercado de trabalho se mostra bastante seletivo e dificulta o acesso de profissionais com mais de 40 anos. Destes, 66,8% informaram ter um vínculo e 17,3% estão sem vínculo atualmente. Ao analisar o vínculo segundo raça cor, se verificou que dentre os desempregados, os negros (pardos+pretos) representam quase duas vezes o número de brancos. Quanto à Renda Familiar, há diferenças entre a capital, o interior e a região metropolitana, nessa ordem. Os maiores salários, classe A acima de 20 SM, são de posse das mulheres brancas e amarelas, 66,7% e 33,3% respectivamente. Nas classes C, D e E quanto menor é a faixa salarial, maior é o quantitativo de profissionais negros. As mulheres indígenas estão representadas nas Classes C e E. Os maiores salários no gênero masculino estão na Classe B, sendo 14,3% de brancos, comparados a 8,9% dos negros.  A maioria dos respondentes declararam que a Renda familiar não é suficiente para as despesas, e é limitante para continuidade dos estudos. Esse conjunto de dados analisados até aqui reforçam os postulados do movimento social negro há mais de um século: os negros são submetidos, desde a falsa abolição, a salários menores, incompatíveis com o seu sustento e com o alcance de outros bens, nesse caso a educação, expressão do racismo estrutural.

Quanto ao Nível de formação essa amostra revelou uma relação inusitada entre o número de profissionais no nível médio, cerca de 35,8%, para 40,9% entre os universitários. No perfil da enfermagem brasileira1, os profissionais do nível médio representaram 77% do total. Quando os dados são recortados racialmente, se verificou um quantitativo cerca de 50% maior de enfermeira(o)s do que técnicos, nas categorias amarela, branca e indígena, e cerca de 40% entre os profissionais pretos. Poderíamos considerar a maior facilidade dos universitários em possuir e utilizar os recursos eletrônicos, ou supor que haja um contingente maior de graduados no Estado de São Paulo, do que no restante do país. Com relação à Especialização, 24,5% responderam ter uma especialização, 27,8% informaram ter mais de uma especialização,15,8% informaram estar cursando e 31,8% responderam NÃO ter especialização. Dentre os que Não têm especialização, 72,9% são negros. O conjunto se mostrou bastante qualificado, em condições de competitividade no mercado. Contudo, alguns discursos expressam condições anômalas nos processos seletivos:

“Algumas Instituições preferem não contratar pessoas de pele preta ou fora dos “padrões” de beleza que a sociedade impõe”.

“Empresas que não contratam pessoas acima do peso, idade após os 40 anos, negros etc”.

“É o racismo que acontece dentro do ambiente onde você está inserido, pode ser na escola, no trabalho. Elencar como critério de avaliação para contratação raça, credo, opção sexual por exemplo”.

“Julgamento baseado na cor do cidadão e não pelas competências”.

“Quando uma mulher branca, loira e magra fica na vaga que estava certo pra ser sua, mesmo você tendo certificado experiência profissional”.

“Profissionais Enfermeiro, negro, homens parecem não estar dentro do perfil das empresas de serviços hospitalares, principalmente os particulares. Dificilmente avançam nas fases do processo, ainda que na prova, tenham alcançado bons resultados”.

Quanto às questões relacionadas ao Racismo e Discriminação, 96,3% da amostra respondeu que existe Racismo no Brasil e 95,6% Não se considera Racista. Cerca de84,8%dos respondentes, informouter conhecimento de racismo a profissionais de enfermagem, e 73,8% informaram ter conhecimento de racismo praticado na instituição (outro profissional, familiares, pacientes). Quanto à Existência de Profissionais negros no local de trabalho, 70,2%responderamSer a Minoria;e com relação a Profissionais negros em Posição de Chefia, 41,9% responderamNão conheço, 17,8% SIM, apenas um(a); 30,5% SIM, mas é a minoria.A somatória dessas categorias correspondeu a 90,3% do conjunto. Vale destacar que o total de respondentes dessa Sondagem foi de 1090, número muito diferente da Sondagem “Ser Mulher na Enfermagem”, realizada em março de 2021, que consistiu em 11.985 participantes. Essa disparidade sinaliza a dificuldade em discutir a questão racial, as desigualdades e privilégios no mercado de trabalho. O conjunto de dados evidenciou as diferenças entre o quantitativo de profissionais brancos e negros, e a invisibilidade desses na estrutura organizacional, em particular nos cargos de Gestão, expressões do racismo institucional. Os discursos ancoram os dados:

“FALTA GERENTE, RT [Responsável Técnico], E SUPERVISOR DE ENFERMAGEM NEGROS/NEGRAS”

“Perceber que cargos de chefia não são ocupados por negros. Identificar que o colorismo facilita na contratação de pessoas. Sobretudo as que lidam diretamente com o público”.

“Por exemplo acabei meu curso procuro uma oportunidade já passei nas provas, mas na gestão querem experiência como vou ter se não me derem uma chance, sendo que muitas vezes preferem conhecidos que alguém indique e nem passa muitas vezes pelos processos é muito triste”.

“Quando a cor é determinante para promoções e cargos de liderança”.

“Significa que pessoas racializadas são consideradas inferiores pela branquitude e independente de nossas capacidades intelectuais, os negros são sempre considerados abaixo. Tratados sempre como serviçais e subalternos, independente da classe social”.

Com relação ao fato de ter ouvido Não estar qualificada(o) para receber promoção,54,3% responderam SIM; quanto a ter conhecimento de Práticas Antirracistas no local de trabalho 84,5% responderam NÃO.

Quando questionadosQuem foi o Sujeito que sofreu racismo no ambiente de trabalho, 72,9%responderam Colega de trabalho, 49,6% o próprio profissional, 34,7% usuário/paciente e 12,3% Familiar. Em relação aoSujeito que cometeu Racismo no ambiente de trabalho, 55,9%responderam Paciente/usuário, 46,6% Colega de equipe, 43,8% Chefia, 36,2% Profissional de saúde; 23,9% outros profissionais e 16,5% Familiar. Em ambas as questões foi permitido assinalar mais de uma alternativa. Os discursos ilustram os dados:

“Acredito que seja aquele [racismo] onde a pessoa é limitada a um cargo função, sem causa aparente apenas pela cor da pele, recebe menos oportunidades, mas de maneira velada”.

“Eu, como enfermeira negra, acabo sendo identificada como técnica em enfermagem”.

“É aquele que sofremos no ambiente de trabalho, por superiores, colegas e clientes”.

“Perceber que um funcionário por ser negro tem a pior escala ou o pior local de trabalho”.

“Quando o almoxarifado chega pra te entregar o seu EPI e a touca de TNT não comporta meu cabelo isso é racismo estrutural porque não foi pensado em mim mulher negra e sim em uma pessoa branca [cabelo liso]”.

“São práticas que perpetuam e criam estereótipos sobre pessoas pretas, fazendo com que essas pessoas sejam subjugadas pela cor, impedidas de acessarem serviços de saúde, por exemplo, com equidade”.

“Uma mulher preta não pode ocupar um cargo de gerência, entre um preto e um branco para altos cargos sempre será escolhido o branco mesmo que o preto tenha mais capacidade. Uma preta dentro do hospital é a faxineira, a técnica de enfermagem, para as pessoas ela não tem “cara” de enfermeira ou médica”.

“Sinto a rejeição dos meus superiores hierárquicos todos os dias, a desqualificação do meu trabalho, sempre existe alguma coisa para tirar o meu sossego”.

Os discursos comprovam, indiscutivelmente, os dados apresentados, e são reveladores dos mecanismos que mantêm as formas praticadas e naturalizadas de racismo no ambiente de trabalho. Além da discriminação, crime inafiançável, os profissionais revelam situações rotineiras de assédio moral e sofrimento mental. Os processos de contratação e de desenvolvimento da carreira no mercado de trabalho do setor saúde, aqui referido à enfermagem paulista, pareceram estar impregnados de práticas discriminatórias, racistas, homofóbicas, gordo fóbicas, etarismo, injustiças, e ainda coniventes com um pacto narcísico2, quando o grupo social branco, ‘modelo de ser humano’ gerencia, apoiado por outros brancos, a reserva e ocupação dos cargos mais qualificados nas instituições.

A conquista do Piso Salarial pela Enfermagem brasileira em 2022, tem o simbolismo do enfrentamento da categoria ao grande capital das empresas de saúde e ao patriarcado. Esse ideário machista pressupõe que uma profissão majoritariamente feminina possa ganhar salários insuficientes para a sua sobrevivência e mobilidade social.  Segundo Santos3, a existência de duas condições sociais – discriminação racial e depreciação da renda salarial, são elementos constituintes das relações de raça e classe, que subalternizam e depreciam o salário da(o) trabalhadora(o) negra(os). Reconhecemos ainda o fenômeno das múltiplas opressões: raça, classe e gênero, cujo resultado é representado pela estratificação social das mulheres negras na enfermagem e no setor saúde de forma mais ampla, impactando na vida, nas trajetórias profissionais, nos processos de adoecimento e morte das profissionais, vivenciados, recentemente, no cenário da pandemia da Covid-19.

O cenário exige comprometimentos, rupturas com essas práticas institucionalizadas e dos privilégios mantidos por séculos, além de providências cabíveis e legais: das Entidades de Classe, das Empresas de Saúde, do Sistema de Saúde e do Estado Brasileiro, para o alcance do respeito, do tratamento humano e equânime a que todos temos direito, enfim, da construção de uma sociedade democrática.

Enquanto a questão negra não for assumida pela sociedade brasileira como um todo: negros, brancos e nós todos juntos refletirmos, avaliarmos, desenvolvermos uma práxis de conscientização da questão da discriminação racial neste país, vai ser muito difícil no Brasil, chegar ao ponto de efetivamente ser uma democracia racial.  (GONZALEZ, Lélia, 2017).

REFERÊNCIAS

1. BENTO, Maria Aparecida da Silva. Pactos Narcísicos no racismo:   branquitude e poder nas organizações empresariais. [Tese]. Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. 2002.

2. GONZALEZ, Lélia, 2017  20 de novembro: Resistência negra na luta contra o racismo estrutural  https://terradedireitos.org.br/acervo/artigos/20-de-novembro-resistencia-negra-na-luta-contra-o-racismo-estrutural/22682. Acesso em 25 maio 20222.

3. MACHADO, Maria Helena (Coord.). Perfil da enfermagem no Brasil: relatório final: Brasil / coordenado por Maria Helena Machado. ― Rio de Janeiro: NERHUS – DAPS – ENSP/Fiocruz, 2017.

4. SANTOS, G. Relações raciais e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2009. (Consciência em debate/coordenada por Vera Lúcia Benedito).

Nota

I.A Enfermagem no Brasil é constituída pelos profissionais Auxiliares e Técnicos de Enfermagem no nível médio, e Enfermeira(os) e Obstetrizes, no nível superior.

*Alva Helena de Almeida
Presidente da Soweto Organização Negra
Integrante da Articulação Nacional de Enfermagem Negra
Enfermeira Mestre em Saúde Pública, Doutora em Ciências.

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