O Legado de Flávio Jorge

O Legado de Flávio Jorge

Maio 5, 2025 Comentários fechados em O Legado de Flávio Jorge By Soweto*#%!

O Legado de Flávio Jorge – nenhum ativista ou liderança negra poderá ficar isolado

Maria Palmira da Silva – Doutora em Psicologia Social; Professora de ensino superior.

Este texto expõe a breve fala de Flávio Jorge Rodrigues da Silva no Seminário “Combate ao racismo e as transformações no mercado de trabalho”, realizado entre os dias 02 e 29 de setembro de 2023, no auditório da Escola de Sociologia e Política de São Paulo. A programação do evento foi extenso, conforme demonstra  o sumário deste documento. Flávio Jorge esteve presente no último dia do seminário para prestigiar a mesa 4 – Juventude e combate ao racismo. Seu breve relato durante a participação no Seminário tocou em acontecimentos de sua vida, buscando resgatar os fundamentos que orientaram a juventude do seu tempo no engajamento da luta contra o racismo no Brasil.  

É válido lembrar que o Seminário só foi levado adiante porque houve uma articulação entre vários parceiros institucionais no processo de sua realização.   

Entre eles, a Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo – FESPSP, o gabinete do vereador Hélio Rodrigues (PT), a presidência do Sindicato dos Químicos de São Paulo, a Ocupação Cultural Jeholu e a Coordenação Nacional de Entidades Negras – CONEN.  

Enfim, o ensaio aqui proposto recupera fragmentos dos primeiros acontecimentos que, de meu ponto de vista, alicerçam os princípios que sustentam o edifício do antirracismo na nossa sociedade.

 O ativismo negro da década de 1970.

No final do século XX, mais especificamente, entre as décadas de 1970 e meados de 1980, quando as manifestações políticas estavam proibidas no Brasil, devido ao regime da ditadura militar, o movimento negro, paradoxalmente, conquista visibilidade e relevância política no cenário social. Essa visibilidade e relevância política tiveram um custo bastante elevado para algumas pessoas. Muitos ativistas envolvidos nas lutas sociais pela conquista de direitos civis e políticos acabaram presos, torturados ou até mortos pelo regime militar.

 Flávio Jorge, foi protagonista e testemunha ocular destes acontecimentos. Viveu intensamente cada episódio desse processo histórico. Ao comentar sobre a repressão política da época, ele relembra:

Em 1977 (…) fui preso durante a invasão na PUC-SP. Eu tinha 24 anos, e fui considerado o estudante mais perigoso do Brasil. (…) Não sabia por que estava sendo enquadrado na Lei de Segurança Nacional. Mas, a polícia achava que eu era perigoso (…). Era 1977.

Assim como tantos outros brasileiros, Flavio Jorge entrou para os anais da história sobre a ditadura militar brasileira categorizado como pessoa perigosa. Naquele contexto, ser classificado como “o estudante mais perigoso do Brasil”, servia de indicativo para que os órgãos de repressão pudessem fichar e perseguir individual ou coletivamente todos os críticos do governo militar. Flávio Jorge, como tantos outros ativistas políticos da época, entrou para a lista de pessoas monitoradas pelos órgãos de repressão política. Sendo classificado como ativista de esquerda, tornou-se urgente para o regime enquadrá-lo na Lei de Segurança Nacional.

Muitos estudos sobre a ditadura militar no Brasil revelam que o regime se manteve no poder durante duas décadas, cerceando a liberdade dos indivíduos. Esse cerceamento incluía qualquer manifestação política contrária à ditadura civil-militar brasileira. Todas as expressões políticas do campo da esquerda estavam proibidas.   

Por isso, muitos estudantes universitários foram presos e enquadrados na Lei de Segurança Nacional. No entanto, a determinação política da juventude de esquerda da época contribuiu para o processo de restabelecimento da democracia no país e, principalmente, para superar o mito da democracia racial, inaugurando um novo ciclo na luta pelos direitos da população negra na nossa sociedade. Flávio Jorge relembra a efervescência do processo de reorganização dos movimentos sociais da época:

Na época, eu tinha 24 anos e não fazia parte do movimento negro. Mas fazia parte de uma organização; depois eu fui saber que o Rafael Pinto, que é meu vizinho hoje, também fazia parte dessa organização que se chamava Liga Operária. E essa liga Operária foi parte do núcleo que organizou o Movimento Negro.

 A Liga Operária foi uma organização operária socialista e trotskista brasileira, que permaneceu ativa durante seis anos. Ou seja, sua longevidade vai de 1972, ano de sua fundação e se estende até 1978, quando encerra suas atividades.  

Entretanto, gostamos de salientar que se a organização desapareceu o mesmo não aconteceu com muitos ativistas, que aguardam novas oportunidades para agir coletivamente.  

É o que veremos a seguir.

Surgem novos desafios para a juventude negra

Como se sabe, a Liga Operária foi uma organização de inspiração trotskista brasileira e desempenhou um papel importante tanto no movimento operário como no movimento estudantil dos anos 1970. Além disso, a Liga Operária teve um papel de destaque na formação da Convergência Socialista e do Partido dos Trabalhadores. Seus membros desempenharam um papel de vanguarda no processo de formação e organização da juventude socialista, de onde surgiram os idealizadores do Movimento Negro Unificado (MNU). Sobre esse aspecto, Flávio Jorge complementa:

(…) depois, em 1978, eu estive nas escadarias do Teatro Municipal, mas como um participante. As lideranças eram outras que criaram o MNU.

Na liga Operária tinha um núcleo de militantes negros: Rafael

Pinto, Milton Barbosa ou Miltão, Hamilton Cardoso, Fátima Barbosa, Leni de Oliveira, Astrogildo Bernardino Esteves Filho e vários outros (…) – eles projetaram a ideia do movimento negro, de criação do Movimento Negro Unificado. Tinha outro nome – Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNUCDR) – em 1978. 

Não é nosso propósito debater todos os aspectos que norteiam a fundação do MN[1], tampouco discutir detalhadamente a histórica manifestação na escadaria do Teatro Municipal de São Paulo, que guarda imagens da época em que jovens negros carregam cartazes, denunciando a falaciosa democracia racial brasileira. Por exemplo, ‘abaixo o racismo’, ‘negro é gente’, ‘abaixo 500 anos de opressão’ e tantos outros. Essas palavras de ordem chamavam a atenção da juventude negra da época.  

A despeito do cenário de repressão política, o protesto público organizado pelo MNU serviu como método para atrair e reter novas lideranças para o movimento negro.  

Flávio Jorge fala do convite que recebeu para ingressar no MNU.

Eu entrei no movimento negro através de um companheiro chamado Astrogildo Bernardino Esteves Filho. Ele chegou para mim e falou o seguinte: ‘Flavinho até quando você vai perder seu tempo (…)?  Você tem um potencial de militância muito grande; nós temos hoje a Liga Operário; nós lançamos agora em 1978 o MNU. Nós queremos que você esteja com a gente. (…) ou você está com a gente ou você vai ficar isolado.’ Foi esse os termos da conversa (…).

As qualidades para se desenvolver como liderança política foram destacadas já nos anos 1970: ‘Você tem um potencial de militância muito grande

(…), nós queremos que você esteja conosco.’  Como agente formador de novas lideranças políticas para atuar nas lutas políticas dos movimentos sociais e de combate ao racismo, a Liga Operária soube escolher o perfil dos ingressantes nas organizações de esquerda da época. É nesse processo que Flávio Jorge foi recrutado como liderança política emergente. “Ou você está com a gente ou você vai ficar isolado”, mas ao longo da vida, os papéis políticos foram se acumulando e o isolamento talvez tenha sido um presságio do passado.  Conforme resume o Instituto Lula, pode-se dizer que na sua jornada, Flavio Jorge tornou-se um dos maiores líderes do movimento negro; o Instituto Lula faz um bom resumo das atividades desenvolvidas por essa liderança inigualável do movimento negro:

  • “Articulador da Soweto Organização Negra na cidade de São Paulo e da Executiva da Coordenação Nacional de Entidades Negras – CONEN;
  • Secretário nacional de combate ao racismo do PT (1995 a 1999).  
  • Um dos principais articuladores do 1º Encontro Nacional de Entidades Negras – ENEN e também da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir).
  • Membro organizador da Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida, realizada em 20 de novembro de 1993, que reúne mais de 20 mil pessoas em Brasília.  
  • Articulador da criação da Secretaria Nacional de Combate ao Racismo do PT, da qual foi secretário de 1995 a 1999. 
  • Em 2003, um marco para o movimento negro, com a criação da SEPPIR. Flávio Jorge, junto à Soweto e à CONEN, tem importante participação na fundação da secretaria”.[2]

Essas realizações transformaram Flávio Jorge em uma liderança negra brasileira inigualável. Ele conquistou destaque político no auge da juventude e manteve-se fiel à agenda política da esquerda ao longo de toda sua vida. Em 1957, o jornal The New York Post publicou um artigo de Martin Luther King[3] que nos ajuda a compreender os efeitos da fama juvenil quando se trata de liderança política. Ou seja, quando você adquire notoriedade política na juventude, as expectativas em relação a você são elevadas.  Esses acontecimentos, como o de “articulador da criação da Secretaria Nacional de Combate ao Racismo do PT, da qual foi secretário de 1995 a 1999”, contribuem para a renovação dos princípios que orientam a luta pelos direitos da população negra na superação do racismo.    

No entanto, tudo isso impõe novos desafios para as lideranças do movimento negro, à medida que buscam unidade na luta.    

Uma mensagem para a juventude negra

Como mencionado no início deste texto, o encerramento do Seminário “Combate ao racismo e as transformações no mercado de trabalho” foi um evento inesquecível, especialmente para aqueles que acompanham a trajetória de luta do movimento negro. Na breve intervenção dirigida aos palestrantes e ouvintes da mesa “Juventude e combate ao racismo”, Flávio Jorge proferiu palavras cheias de esperança para a juventude negra.  

Ele relembrou a opressão que enfrentou durante os tempos da ditadura militar, destacando como sua trajetória política se entrelaçou com o presente na busca pelos direitos de cidadania. Além disso, Flávio Jorge compartilhou as decisões que tomou para fortalecer a luta e a resistência contra o racismo no Brasil:

Eu acho que esta mesa representa um pouco do futuro, do que podemos fazer com o movimento negro e o papel da juventude. Em 1978 não havia uma juventude negra distinta, porque a maioria do movimento negro era composta por jovens. A média de idade naquela época era entre 25 e 40 anos, no máximo. A Juventude negra de 1978-1980 foi a mais importante dos últimos 40 anos, (…) porque ela não apenas analisava o quadro de desgraça e morte da juventude, mas pensava no futuro.

 A juventude que hoje se beneficia das políticas de promoção da igualdade racial, como cotas no ensino superior, mesmo que não tenha desenvolvido essa consciência política, carrega consigo a força ancestral que forjou com dignidade a trajetória política da juventude da década de 1970.

(…) hoje nós temos uma nova realidade (…)por conta das políticas de cotas; nós nunca tivemos uma Juventude tão qualificada como a gente tem hoje. Quantos jovens entram nas universidades! (…) São mais de dois, (…) dois milhões é coisa (…) Se você pensar que a minha geração, a do Rafael Pinto, é a (…) geração sem cotas, era bancada pelo pai de alguém para que a gente estudasse e você hoje tem dois milhões de jovens que entraram na universidade; a gente tem uma perspectiva de futuro muito grande (…) a realidade está nos mostrando que a gente tem condição de ter um futuro da Juventude brasileira diferente daquela que nós tínhamos quando a gente fundou o movimento Unificado. É só isso que eu queria falar uma fala mais de futuro. (…) Eu quis fazer uma fala mais de perspectiva de futuro.

Após essas considerações, Flávio Jorge encerrou sua mensagem com uma perspectiva de futuro para a juventude negra. Oito meses após sua participação no seminário, ele faleceu vítima de um câncer contra o qual lutava havia anos.  

Hoje ele é mais uma estrela que brilha na constelação da história das lideranças negras. Que a memória de suas realizações seja um farol que nos guie para um mundo sem racismo, mais justo e igualitário.  

Bibliografia

BRASIL. SEPPIR – Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Brasília-DF, 2005.  

BRAUS. E., SANTOS, G.; OLIVEIRA, J.A. Movimento negro unificado – a resistência nas ruas. Edições SESC & Fundação Perseu Abramo. São Paulo. 2020.

CARSON. C. Eu tenho um sonho – a autobiografia de Martin Luther King. Bizâncio. Lisboa, 2003.

SANTOS, G. SILVA, M. P. da. (org.). Racismo no Brasil: percepções da discriminação racial e do preconceito no século XXI. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2005.

SILVA, M, P. da. O Antirracismo no Brasil: Considerações sobre o estatuto social baseado na consciência racial. Revista Psicologia Política. São Paulo. V. 1. N. 1. p. 37-65. jan./jun. 2001.


[1] Sobre o assunto consulte: BRAUS, E; SANTOS, G; OLIVEIRA (ORG.). Movimento negro unificado – resistência nas ruas. Edições SESC & Fundação Perseu Abramo.  São Paulo. 2020.

[2] Para maiores informações vide: https://institutolula.org/noticias/noticias/brasil-perde-um-deseus-maiores-lideres-do-movimento-negro-flavio-jorge

[3] Se você deseja saber sobre o tema veja De Clayborne Carson (org), “eu tenho um sonho – a autobiografia de Martin Luther King. A referência completa está na bibliografia.

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